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Ao Maestro com carinho
Um adeus ao maestro Martinho Lutero Galati de Oliveira

Ao Maestro com carinho

Martinho Lutero foi o fundador do Coro Luther King, em São Paulo (1969), da Escola Nacional da Música de Moçambique (1978) e do Coro Cantosospeso, em Milão (1987). Foi coordenador do setor de Música Coral do Movimento Mário de Andrade, vencedor do Prêmio Andrés Segovia de Regência de Santiago de Compostela, membro da direção do Fórum Coral Mundial, diretor artístico do Coral Paulistano Mário de Andrade do Theatro Municipal de São Paulo, criador dos projetos Virada Coral, Canta São Paulo e SP Cidade Coral.

No dia 26 de fevereiro de 2019, esteve no projeto “Em primeira pessoa”, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, onde, em um bate-papo com o público, contou curiosidades sobre sua vida e expôs seu pensamento sobre o canto coral. Reproduzimos abaixo um resumo do que foi relatado pelo maestro naquela noite como forma de homenageá-lo.
 
A formação musical
 
 Martinho Lutero nasceu em Governador Valadares, Minas Gerais, mas se considera filho de Alpercata, cidade à beira do Rio Doce. Viveu na primeira parte da infância em Vassouras, no Vale do Paraíba. A cidade tinha uma vida musical rica, com festas populares, e o maestro considerava que sua primeira formação musical veio da Rádio Perereca, que saía dos alto falantes colocados nas palmeiras da praça principal. Após a Ave Maria de Gounod, às 18h, começava um programa com música clássica, música internacional e música local. Foi assim que ouviu as primeiras sinfonias, por volta de 1956, ainda que a rádio tocasse geralmente apenas um movimento. Foi morar no Rio de Janeiro por um ano e meio, onde teve a maior emoção que já sentiu: presenciou a bateria da Unidos de Vila Isabel no ensaio da escola de samba. Posteriormente, apesar de ser santista, chegou a tocar no bloco da torcida do Corinthians. 
  Já em São Paulo, teve contato com o Conservatório Dramático Musical e depois, estudou no Conservatório Musical do Brooklin Paulista, dirigido pelo pedagogo Sígrido Levental. O maestro lamentou no bate-papo o fato de as universidades terem tomado o lugar dos conservatórios a partir do fim dos anos 1990, pois no conservatório se estudava muito mais anos do que na universidade. Além disso, declarou: “não é uma escola que forma o músico. O que forma o músico é a cidade em que ele vive, é a música que ele vive na infância, que ele cultiva na adolescência, que ele adora na mocidade e que ele batalha muito na idade madura pra chegar, velho, talvez um músico já razoável”. Apesar de a escola ajudar com a parte técnica, “a música está na rua, a música está em todos os lugares”. 
  No Rio de Janeiro, em 1959, com seis anos de idade, não tinha acesso à música clássica, pois ela era muito elitista nessa cidade. Entrar no Theatro Municipal era quase impossível. A música popular era muito forte e a música clássica passava despercebida para quem não estivesse em seu mundo. Já em São Paulo a música clássica, terminologia que ele achava inútil, era acessível. Não perdia a Orquestra Filarmônica de São Paulo, dirigida pelo maestro Simon Blech, nos concertos gratuitos do Teatro Cultura Artística. No Theatro Municipal, crianças de até 14 anos não pagavam, mas como era obrigatório o uso de terno e gravata para assistir aos concertos matinais, Lutero exigiu dos pais que comprassem o traje, que só usava para ir aos concertos. Afirmou em tom de brincadeira, inclusive, que nunca mais usou gravata. 
 
Música e política 
 
A Rede Cultural Luther King foi fundada em 1969, no auge da ditadura militar, e o primeiro concerto do coro foi em 15 de novembro de 1970. Lutero não era religioso, mas seu pai era pastor protestante e quis homenagear Martinho Lutero dando seu nome ao filho. Martin Luther King tinha sido assassinado em 1968, Lutero já era engajado no movimento antirracista e, como o movimento Juventude Musical, do qual fazia parte, era mais conservador, passou a ser apelidado de Luther King.  O maestro declarou que em 1968 ninguém mais podia ficar em cima do muro dentro do cenário cultural e colegas seus foram para a luta armada. Apesar de ter somente 15 anos em 1968, o maestro sentiu a efervescência política do momento. É nesse contexto que surge o Coro Luther King. Lutero salientou, no entanto, que o coro era formado por pessoas que amavam a música em primeiro lugar, não a política, nem o protesto, embora a paixão pela política também estivesse presente.  
  Lutero relatou que no âmbito da música clássica, o coro era uma exceção, politicamente falando. Fazer música clássica foi por muito tempo “coisa de direita” e fazer música popular era “coisa de esquerda”. Para o maestro, era raro haver um pianista ou violinista que pensasse no coletivo e não na sua individualidade. Diziam que não tinham tempo pra perder com política, pois queriam estudar para tocar bem o instrumento. Quem tocava em orquestra e cantava em coro, no entanto, sentia a necessidade de ter algo para dizer. O Coro Luther King nasceu, portanto, nessa linha de fazer música em coletivo, com a preocupação com o coletivo e não com o individual. 
 
Já em sua origem, havia dois secretariados dentro do coro: o secretariado antirracismo e o secretariado “em prol do homossexualismo”, para que negros não fossem ofendidos e homossexuais não fossem barrados no coro. Lutero afirmou que até hoje o coro é identificado como um coro político, entre outras razões, porque cantou na histórica missa em homenagem a Vladimir Herzog. No entanto, para Lutero, o Luther King nunca foi um coro político. O maestro disse que nunca se discutiu fazer algo por ser uma iniciativa política, mas por ser uma iniciativa musical. A militância era cultural, musical, coral. Da mesma forma, nunca foi pedida carteirinha de partido ou de ideologia. 
 
Lutero contou que o Coro Luther King foi o primeiro a fazer no Brasil um concerto apenas com spirituals americanos, a música dos negros escravizados nos Estados Unidos. O que hoje seria encarado como uma música revolucionária, antirracista, na época, em 1972, foi encarado como um concerto imperialista, o que fez com que o coro fizesse o comunicado “Tem sentido fazer negro spirituals hoje?”. Nele, comparavam os spirituals com a música protestante brasileira daquele momento e afirmavam que ainda havia sentido cantar aquela música, fazendo a analogia entre os negros brasileiros pobres e protestantes de então e os escravos que cantavam sua esperança de chegar ricos no céu. Se tinham que justificar pra patrulha ideológica por que cantavam música americana, hoje teriam que justificar por que cantavam música revolucionária. 
 
Coro amador X coro profissional 
 
Para Lutero, os bons coros sempre foram os coros amadores. A fórmula mágica era colocar na frente do coro os melhores profissionais possíveis, que ensaiam, professores de técnica vocal, mas manter a massa amadora. Considerava os coros profissionais, como o coral lírico do Teatro Municipal de São Paulo e o Coral Paulistano, “coitados”, pois os cantores estavam lá porque precisavam trabalhar. Lutero afirmou que nem sempre é possível conjugar profissão e paixão na mesma pessoa, na prática, mas no coro amador a paixão estava presente, o que garantia sua superioridade em relação ao coro profissional. 
  Lutero defendeu que houve uma inversão de valores na metade da década de 1980, mas não de qualidade. Os corais amadores acabaram e hoje as pessoas acham que os profissionais são os melhores, mas continuam ruins. O maestro era um profissional da música, mas se disse orgulhoso de ser um amador dentro da música coral e atribuía a esse fato fazer isso bem. Como músico profissional, trabalhava onde precisava. Chegou a tentar trabalhar em banco, mas não conseguiu, pois não sabia fazer mais nada além de música. 
 
A origem do Coro Luther King
 
  O maestro Jonas Christensen, um grande aglutinador, dirigia o coro onde Lutero cantava no fim dos anos 1960. Lutero reconhece que foi Christensen que o ensinou como fazer o que se sabe fazer e envolver as pessoas para fazer junto e bem feito. Christensen disse a Lutero que só lhe daria aula de regência se ele formasse um coral. Foi assim que, com os contatos que já tinha do movimento Juventude Musical e com gente oriunda de vários outros coros, fundou o Coro Luther King.  Lutero já tinha inclusive cantado na igreja, de onde foi expulso com os amigos porque queriam cantar em latim, por acharem mais elegante, o que não era permitido. 
  Lutero contou que o Coro Luther King era um grupo difícil, de “endiabrados”. Não havia como dar muita ordem, porque todo mundo queria mandar, desde o começo. A busca de uma dinâmica de grupo não era fácil e Lutero considerava que essa característica era a força e o problema do coro, mas principalmente sua força. Quando foram se apresentar no Festival de Coros do Theatro Municipal, ainda não tinham decidido o nome do coro, pois cada integrante queria dar um nome diferente. Provisoriamente, o secretário do teatro os anunciou como coro do Luther King, como Lutero era conhecido, mas o nome persistiu, pois se identificavam com o pastor americano. Foi assim que o Coro Luther King foi a primeira instituição cultural do mundo a levar o nome de Luther King. O primeiro uniforme era uma camiseta Hering branca em que cada membro estampava a sua imagem de Martin Luther King, o que incluiu até uma imagem de árvore.  
 
A ida para Moçambique
 
  Em 1978, Lutero trabalhava no Theatro Municipal de São Paulo e tinha 23 anos. A melhor perspectiva que tinha no momento era, após aguardar pro volta de 30 anos, ser o diretor do teatro. Em um dia em que era apresentada uma sinfonia de Brahms, porém, viu senhoras vestidas com casaco de pele na primeira fila e percebeu que queria algo diferente para sua vida. No mês seguinte, tinha que tomar uma decisão: aceitar um convite para uma bolsa de estudos em Colônia, na Alemanha, onde já tinha estado em 1974, ou ir pesquisar música tradicional na África. No bate-papo, Lutero confessou que quando tinha 23 anos era prepotente e achava que a música erudita era pouco pra ele e decidiu ir para a África. Seu primeiro contato com a África fora em 1974, no período das guerras de libertação das colônias portuguesas. Acompanhou o processo de perto, pois estava na Europa, onde havia mais informações. Teve contato direto com a luta de libertação de Moçambique e em 1975, quando o país se libertou, o vice-presidente se tornou um conhecido com quem havia estudado em Paris e que sempre o convidava para ir para Moçambique ajudar a construir a nação. 
  Além disso, desde 1971, Lutero tinha uma paixão pela música colonial brasileira, estimulada por Régis Duprat. Quase todos os compositores desse período eram negros e pardos, filhos de senhores com as escravas. Nossa música barroca é, portanto, intimamente ligada à música africana e Lutero achava que encontraria as origens da música brasileira em geral na África. Enxergou a ida para Moçambique como uma oportunidade de se aprofundar, assim, na música brasileira. Viajou com um contrato da ONU por dois anos para fazer pesquisa. Não encontrou nada que se relacionasse com a atual música brasileira de origem negra, mas descobriu a música africana e mais do que isso, a própria música. Afirmou no bate-papo que voltou a fazer as pazes com a música na África e voltou a ser um músico mais místico do que técnico novamente. 
 
A ida para a Itália
 
  Em 1969, Lutero se apaixonou pela música contemporânea. Considerava, inclusive, que a paixão pela música coral vinha da descoberta da música contemporânea, pois nos anos 1960 a música contemporânea em São Paulo acontecia basicamente em corais e em percussão. Os regentes corais, como Klaus Dieter Wolf e Jonas Christensen, iam todo ano para um festival em Darmstadt, na Alemanha, para saber das últimas novidades da música contemporânea mundial. Os três enfants terribles da música contemporânea da época eram Pierre Boulez, Karlheinz Stokhausen e Luigi Nono, aluno do maestro Bruno Maderna. 
  Lutero se apaixonou pela música de Luigi Nono, um músico de esquerda que defendia que o futuro da música ocidental estava no estudo das culturas que a própria cultura ocidental massacrou pelo caminho, como a música grega e a música autóctone americana. Quando estava na África e encontrava algo que considerava diferente, na selva, Lutero escrevia para Luigi Nono e assim começaram uma relação. Em 1984, Nono o convidou para ir para Veneza estudar. A intenção era ficar dois anos, mas Lutero acabou ficando trinta e cinco. Junto de outros ex-alunos de Nono, fundou a Associação Cantosospeso, em Milão, em sua homenagem. 
 
O canto nas escolas 
 
  Lutero lamentou no bate-papo que o Brasil é um país que canta, um país de cantores, mas que neste país, o único setor que não tem uma representatividade importante no exterior é o canto erudito. Enquanto cantores americanos chegaram a imitar cantores brasileiros de música popular, a única cantora brasileira de música erudita de sucesso internacional, Bidu Sayão, saiu do país ainda criança. 
  Segundo Lutero, Villa-Lobos foi o primeiro que disse que o Brasil tinha que cantar. Apesar de ter uma vasta obra instrumental, quando Villa-Lobos falava sobre educação musical, defendia o canto orfeônico. Lutero se considerava ainda fruto do período de Villa-Lobos e que seus professores foram filhos diretos do trabalho do maestro. A educação musical nas escolas teria acabado, na sua opinião, em razão da substituição da formação do homem para ser universal para ser um técnico que produza riqueza. Lutero salientou que uma pessoa entra no coro e em três anos está em contato com o que a cultura ocidental produziu de mais profundo. Por meio do canto, descobre o ser humano em sua cultura e trabalha com outras culturas, como a indiana e a africana. Vira um ser humano diferente, mais completo. 
 
Uma mensagem de despedida 
 
“Eu defendo de armas na mão a atividade coral porque a atividade coral é esta alternativa de colocar na mão de cada pessoa o mundo, o mundo cultural, colocar na frente dela. Além de todos os outros aspectos sociais. Que é no coro que você aprende que você não é melhor do que seu vizinho necessariamente. Que o teu vizinho que é médico, diretor do departamento de enterologia do Hospital das Clínicas, canta muito pior do que você, que no coro ele não é nada, ele é um coitadinho que está encostado ali e você que faz Uber é um cara que é dez vezes melhor do que ele e aquele cara quer ficar do teu lado porque ele quer cantar bem e sabe que do teu lado ele vai cantar bem. Isto não tem preço. E isso não existe em qualquer outro lugar, não existe.  Não existe, porque existe um outro tipo de filtro, um outro tipo de valorização. Outra coisa que você aprende no coro: que por mais que a tua voz seja linda, maravilhosa, forte, se você não dosar bem com a pessoa que está do seu lado, você não vai produzir um som maravilhoso lá na frente, que somente vai ser maravilhoso o produto do conjunto e não do teu esforço individual. Que você sem aquelas pessoas não é ninguém e não faz nada. Não é em qualquer lugar que você aprende isso. E se você aprende isso pra cantar, com certeza, mas a probabilidade de que a tua vida no trabalho, na escola, com a família, vai ser diferente, é muito alta. Não é automática, mas é muito alta. É muito alta a probabilidade de que você vai ser um ser humano melhor. Um ser humano que canta em coro tem a alta probabilidade de ser uma ser humano melhor” 

(Maestro Martinho Lutero, Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, 26 de fevereiro de 2019)

Por Danilo Cymrot
Doutor em Criminologia pela USP
Pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc