Elaboração de Projetos de Pesquisa na Área da Cultura
Entrevista com Ferdinando Martins
O isolamento social por motivo da Covid-19 alterou radicalmente a rotina e o modo de vida da população no Brasil. Com todas as complicações advindas dessa realidade, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo buscou alternativas para manter a programação prevista, passando a oferecer algumas ações – inclusive inéditas dado o ineditismo que nos assola – em ambiente virtual. Em maio, presencialmente, ocorreria o curso Elaboração de Projetos de Pesquisa na Área da Cultura em continuidade a uma linha temática de elaboração de projetos, em abordagem ampla, que vinha sendo tratada desde o início do ano. Assim, para manter o vigor dessa proposta, realizamos uma entrevista com o professor Ferdinando Martins, ministrante do referido curso. A intenção foi a de abarcar os principais aspectos pertinentes a uma pesquisa cientificamente orientada acerca da realidade social, tendo ainda a dupla expectativa de mostrar a importância das Ciências Humanas e refletir sobre o impacto de estudos no campo da cultura.
A entrevista foi conduzida por Mauricio Trindade da Silva, gerente adjunto do Centro de Pesquisa e Formação e doutor em Sociologia da Cultura (FFLCH-USP).
Ferdinando Martins é jornalista, sociólogo e produtor cultural. É professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo nas áreas de Estética, Crítica e História das Artes Cênicas. Na licenciatura em Educomunicação (ECA-USP), ministra disciplinas voltadas a questões de identidade e subjetividade. É, também, jurado do Prêmio Shell de Teatro e professor visitante do Hemispheric Institute of Performance and Politics da Universidade de Nova York. Foi diretor do Teatro da USP (TUSP), de 2010 a 2018 e coordenador de Cooperação Cultural entre a USP, a Universidade Nacional Autônoma do México e a Universidade de Buenos Aires. Realizou pesquisas sobre a produção cultural em países da América Latina (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e México) e do Oriente Médio (Turquia e Irã). Trabalha também com questões relacionadas a gênero e sexualidade no teatro, área a que se dedica desde 2007. No momento, desenvolve a pesquisa “Censura ao corpo na performance contemporânea: estéticas, políticas e afetos. Análise comparativa Brasil/Estados Unidos”, desenvolvida com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
CPF: Atualmente, e talvez não só no Brasil, a comunidade acadêmica e a ciência passaram a ser vistas com desconfiança. Afora o problema da proliferação de fake news, inclusive sobre diversos assuntos especializados, parece que o “achismo” – falar o que se imagina sem qualquer embasamento – tem ampliado o seu terreno. Em razão desse cenário, como reafirmar a importância das Ciências, em geral, e das Ciências Humanas, em específico?
Ferdinando Martins: Vivemos um momento no qual os afetos se confundem com os fatos, caracterizando o que alguns chamam de “pós-verdade”, da qual as fake news são um produto. Isso não é um fenômeno novo, mas foi intensificado com as novas formas de comunicação em massa e interpessoal. Ao longo dos séculos XIX e XX, o pensamento científico erigiu-se como forma legítima de conhecimento, e isso não mudou. O que ocorre com as fake news é que mentiras são apresentadas como verdades científicas – ou seja, apropriam-se do linguajar científico para divulgar falso conhecimento e informação. Esse cenário exige ações de valorização da importância das ciências, em especial na educação e nos meios de comunicação, incluindo as redes sociais. No caso das Ciências Humanas, a situação é ainda mais complexa, pois os métodos, sobretudo os qualitativos, não são tão evidentes. Além disso, os objetos de pesquisa das Ciências Humanas não são materiais. Como sabemos que a sociedade existe? O que é, de fato, a cultura? E a economia? As pesquisas em Ciências Humanas buscam detectar a existência desses fenômenos imateriais, suas implicações e ressonâncias. Vejamos, por exemplo, a situação atual na qual um terço da humanidade está em quarentena para evitar a contaminação pelo coronavírus. O que verificamos é um embate entre o conhecimento científico, as ideias do senso comum e as fake news. Quem defende o isolamento horizontal e hábitos como o uso de máscaras e lavar as mãos apoia-se em conhecimento científico acumulado em diversas áreas (Medicina, Epidemiologia, Economia, Antropologia, Sociologia, entre outras). São medidas que exigem sacrifício e geram ansiedade e incertezas sobre o futuro, o que leva outra parcela da população a tomar para si ideias contrárias ao conhecimento científico, afetivamente negando ou minimizando a existência de riscos. No caso da Economia, há estudos que mostram que o isolamento horizontal permitirá uma recuperação econômica mais rápida após a crise, mas a angústia imediata leva alguns sujeitos a defenderem a abertura do comércio e a volta ao trabalho. Por isso a necessidade da elaboração de projetos bem fundamentados, com sólida revisão teórica que abarque o conhecimento acumulado sobre o tema e o objeto escolhidos, uma justificativa bem argumentada que destaque a relevância da pesquisa, objetivos claros e delimitados e metodologia apropriada para a investigação.
CPF: A elaboração de projetos de pesquisa bem fundamentados, como você diz, é parte essencial do contínuo processo de aprimoramento da ciência, o que pode gerar descobertas inusitadas e certo avanço no conhecimento. Na área das Ciências Humanas não é diferente, em se tratando da necessidade de fundamentação teórica e metodológica. Assim, na sua experiência de pesquisa, de orientação acadêmica e de participação em comissões de seleção no campo da cultura, quais são os entraves ou dificuldades mais corriqueiras que você se depara ao avaliar projetos de pesquisa?
FM: Em geral, os principais problemas encontrados são a falta de clareza dos objetivos e a não delimitação apropriada do objeto de investigação ou do corpus da pesquisa. Esses problemas podem, muitas vezes, estar inter-relacionados, pois um objeto mal construído dificulta esclarecer o que se pretende examinar. Certa vez me disseram que pesquisa é uma questão de mira, e isso é verdade. É preciso saber onde mirar (o objeto) e o que se pretende observar (os objetivos). No desenvolvimento do trabalho, é recomendável que o/a pesquisador/a fique atento para não desviar o olhar sobre o objeto escolhido e, assim, ater-se aos objetivos propostos. Nas Ciências Humanas, a construção do objeto é mais complexa pois demanda um acúmulo de informações teóricas, metodológicas e empíricas sobre realidades que não são palpáveis ou cuja mensuração nem sempre é possível. Entre as Ciências Sociais, por exemplo, a própria ideia de como uma sociedade funciona é diferente nas abordagens sistêmicas (por exemplo, a de Pierre Bourdieu e as estruturalistas) e nas dialéticas (como a da Escola de Frankfurt e a maioria das vertentes marxistas). Nesse sentido, aparecem dois outros problemas recorrentes: a escolha equivocada da abordagem teórica e a falta de coerência entre esta e os procedimentos metodológicos. Hoje em dia, não se exige que uma pesquisa restrinja o escopo teórico a uma determinada escola ou vertente de pensamento, mas é importante que os autores e as abordagens escolhidas possam dialogar entre si, que haja minimamente ressonâncias entre eles. Da mesma forma, os procedimentos metodológicos devem estar alinhados com os objetivos e os referenciais teóricos para que a pesquisa não resulte em um emaranhado de ideias confusas. Eu digo para meus alunos que é preciso ter autocontrole, pois há muitas tentações no caminho da pesquisa. Podemos ficar tentados a colher informações que não dizem respeito ao objeto escolhido, ou a incorporar autores que não se encaixam com o referencial teórico. É muito comum, por exemplo, alguém que se propõe a estudar determinado período histórico desviar a atenção para o período precedente.
CPF: Com os cuidados que você define, quais são as partes mais recorrentes na escrita de um projeto? Há modelos específicos ou existe certa plasticidade composicional?
FM: Existem elementos que são indispensáveis a um projeto de pesquisa, entre eles os já mencionados objeto, objetivos, referenciais teóricos e metodologia. Também é importante que haja uma justificativa, que localize o leitor sobre o estado atual das pesquisas na área e a contribuição singular proposta pelo autor do projeto. Deve-se dedicar especial atenção para a apresentação ou introdução, especialmente quando a pesquisa proposta lida com temas pouco convencionais ou inéditos. Além disso, espera-se que o projeto contenha um cronograma de execução realista, com atividades e objetivos divididos em etapas exequíveis. Por fim, que contenha as referências bibliográficas e outras fontes de consulta. Em geral, os pesquisadores iniciantes associam as referências às normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que muitas vezes são vilanizadas. A ABNT não determina o conteúdo, que é responsabilidade do pesquisador. As normas, neste caso, visam possibilitar a recuperação das informações mencionadas pelo autor do projeto, uma vez que o interesse de uma pesquisa é contribuir para sua área de atuação. Esses elementos (apresentação/introdução, justificativa, referenciais teóricos, objetivos, metodologia, cronograma e referências bibliográficas) podem ser apresentados de diferentes formas. A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por exemplo, propõe: a) introdução e justificativa, com síntese da bibliografia fundamental; b) objetivos; c) plano de trabalho e cronograma de sua execução; d) material e métodos; e por fim e) forma de análise dos resultados.
CPF: Você ressaltou que a construção do objeto requer atenção, foco e mira, como também coerência teórico-metodológica. Mas às vezes a pretensão da pesquisa é maior do que as possibilidades de realizá-la, ou seja, o recorte do objeto mostra-se amplo demais, impossibilitando sua consecução. E muito recorrentemente, em outra situação, o objeto escolhido surge pré-determinado, como algo a ser defendido ou provado (portanto, já enviesado no ponto de partida) e não como algo que precisa ser investigado. Como escapar dessas situações?
FM: A preocupação com a construção do objeto deve ser maior nas Ciências Humanas. Seus objetos, além de não serem visíveis e de difícil mensuração, eles podem mudar ao longo do desenvolvimento da pesquisa. São vários os cuidados necessários. Em primeiro lugar, é preciso entender que um tema não é um objeto. O objeto precisa ser singularizado e ser passível de observação. É o comportamento do objeto que será verificado ao longo da investigação proposta. Só assim que poderá ser produzido conhecimento. Por exemplo, a depressão ou a economia criativa são temas. A incidência de casos de depressão durante a pandemia de Convid-19 em moradores da Vila Brasilândia ou o impacto da economia criativa na escolaridade de filhos de artesãos são objetos. Como você já destacou, a questão da abrangência na construção do objeto é outro ponto importante. Nesse caso, deve-se pensar não apenas em relação ao objeto em si, mas também nas condições de realização da pesquisa, se existem recursos financeiros, materiais e técnicos disponíveis e se o tempo de execução da pesquisa permite a observação proposta. Hoje, os mestrados são curtos, em torno de dois anos para a conclusão, portanto os projetos de pesquisa para esses programas devem ser exequíveis nesse curto período. Já a predeterminação do comportamento dos objetos é outro erro frequente e ocorre quando o pesquisador já inicia o projeto com uma ideia pronta, em geral com algum juízo de valor formulado sobre aquilo que pretende trabalhar. Cabe lembrar que um projeto de pesquisa formula ao menos uma hipótese sobre o objeto, mas não apresenta respostas a priori.
O objeto precisa falar por si, não pelos valores e ideologias do pesquisador.
CPF: E quando o desenvolvimento da pesquisa indica problemas que não estavam previstos no projeto?
FM: Pegando um gancho com a pergunta anterior, vamos primeiro diferenciar o que é de fato um problema do que é uma inadequação às expectativas do pesquisador. Nas Ciências Exatas e Biológicas, esse último problema é mais difícil de ocorrer, mas não nas Ciências Humanas. Se o pesquisador começa o trabalho de investigação munido da resposta que ele espera obter, o que se desviar de suas expectativas pode ser erroneamente identificado como um erro. A subjetividade do pesquisador precisa ser controlada e, por isso, alguns projetos hoje apresentam na introdução a relação particular do pesquisador com o objeto, para que assim se relativizem seus apontamentos e escolhas. Hipóteses são hipóteses, não respostas. Já os problemas reais surgem e exigem que o pesquisador volte sempre para o projeto, a fim de verificar o cumprimento de seus objetivos. Nesse sentido, os procedimentos metodológicos devem ser divididos em etapas e o cronograma conter momentos de avaliação de cada uma delas. Uma vez, participei de uma banca de doutorado cujo pesquisador, bastante competente, propôs avaliar a relação Estado/teatro no Brasil no século XIX, tema que contribuiria para a compreensão da formulação de políticas culturais no país e padrões vigentes ainda hoje. Para isso, estabeleceu como objeto os discursos parlamentares do período, que seriam submetidos a uma análise de conteúdo em uma das fases da pesquisa. O problema é que o teatro era um tema corriqueiro no período, presente em uma quantidade muita grande dos discursos, o que era inimaginável na ocasião de redação do projeto. Foi necessária uma reformulação no escopo do objeto para que a pesquisa pudesse ser concluída no prazo.
CPF: Você pode indicar e comentar dois ou três livros que, na sua avaliação, são recomendáveis para auxiliar alguém que esteja elaborando pela primeira vez um projeto de pesquisa?
FM: Um livro sempre citado quando se trata de elaboração de projetos acadêmicos é o Como se faz uma tese (Editora Perspectiva, várias edições), do Umberto Eco. De fato, é uma obra que visa esclarecer o passo-a-passo do trabalho a ser desenvolvido pelo/a pesquisador/a. Gosto, porém, de indicar outro trabalho do mesmo autor, Interpretação e superinterpretação (Editora Perspectiva, várias edições), que é voltado para a teoria literária, mas fornece uma dimensão ampla sobre a produção dos sentidos e as formas de argumentação. Das Edições Sesc, os livros do Ulisses Capazzoli [Um fantasma leva você para jantar (2017), Mistérios de um enigna (2019) e A origem e o fim do tempo (2019)] mostram, em linguagem a acessível, como funciona o pensamento científico. Especificamente sobre as Ciências Humanas, vale a pena enfrentar a leitura densa de dois autores centrais: A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (Editora Perspectiva, 2000), e A lógica da pesquisa científica, de Karl Popper (Editora Cultrix, 2013). Há, também, um artigo clássico de Pierre Bourdieu chamado O campo científico, publicado originalmente em francês no Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales em 1976 (há traduções em português disponíveis na Internet).
Ainda sobre a contribuição de Pierre Bourdieu para o pensamento científico nas Ciências Humanas, recomendo dois artigos de duas pesquisadoras brasileiras: de Ana Paula Cavalcanti Simioni (IEB-USP), A contribuição de Pierre Bourdieu para a sociologia da arte (França e Brasil), escrito em parceria com Alain Quemin e publicado na Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, número 89 (agosto/2019); e de Cláudia Lago (ECA-USP), Pierre Bourdieu e algumas lições para o Campo da Comunicação, publicado na revista Intertexto, número 34, (setembro-dezembro/2015).
CPF: Por fim, qual mensagem você deixa para estimular o jovem pesquisador.
FM: A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz tem dito ultimamente que a pandemia de Covid-19 marca o fim do século XX. Estamos, de fato, entrando em uma nova era, na qual a produção científica vem sendo indevidamente questionada. É importante que cada vez mais jovens pesquisadores sejam formados e consigam levar a cabo seus projetos, especialmente nas Ciências Humanas, pois uma parte da população confunde crença e opinião com argumentação e conhecimento. As dificuldades são grandes, algumas de nossas principais instituições de fomento à pesquisa estão sendo solapadas por más gestões, eivadas de vieses ideológicos, mas a satisfação de contribuir para uma compreensão ampliada dos fenômenos é imensamente gratificante. O prazer da descoberta deve ser cultivado.
\o/