Entrevista com Cláudia Leitão
Secretária da Economia Criativa do Ministério da Cultura.
O que é Economia Criativa?
É difícil responder, pois o conceito de Economia Criativa que precisamos construir no Brasil não é o conceito de Indústrias Criativas na forma como está definido pelos anglo-saxões, pelos australianos, pelos asiáticos ou pelos estadunidenses. Precisamos pensar numa dinâmica econômica envolvendo bens e serviços culturais a partir da compreensão da nossa própria diversidade, que poderia ser um ativo para a produção de riqueza para o país.
Quando analisamos as definições de indústrias criativas no resto do mundo, o primeiro ponto que aparece é o copyright. E nós, propositalmente, retiramos a palavra copyright do Plano da Secretaria da Economia Criativa. A visão de propriedade é ainda muito marcada por um direito civil do século XX, onde a função social não está presente. Consideramos que o Brasil, em função das suas tecnologias sociais, precisaria avançar em marcos regulatórios novos, numa visão jurídica mais condizente com o século XXI.
Economia Criativa no sentido do que temos tentado construir não tem uma definição fechada, mas já sabemos o que ela não é. Uma boa forma de começar a discussão é estabelecendo que o Brasil não precisa de uma Secretaria para as indústrias culturais, pois essas indústrias já têm muita força e uma vida própria. Não é para elas que estamos trabalhando ou que imaginamos que iremos trabalhar. É justamente o contrário: estamos construindo uma reflexão sobre o que seria uma economia da cultura para os pequenos, incluindo, aí, os informais. São os milhões de produtores culturais brasileiros, os pequenos empreendedores de vários setores: da cultura digital aos games, do artesanato ao design, da arquitetura às artes.
Quais são as principais atribuições da Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura?
Desde o início, nossa preocupação sempre foi a de formular e implementar políticas públicas para essa dinâmica econômica que vai da criação até o consumo e fruição, e está claro que temos um problema de distribuição.
O Ministério da Cultura tem uma tradição de trabalhar com editais, fomentando a criação. Muito bem, mas e aí? Conheço pequenas editoras que dizem que são o “túmulo do livro”. Conheço artesãos que dizem que são o túmulo do seu trabalho. A Secretaria visa justamente formular políticas para essas dinâmicas econômicas da criação/produção, distribuição/difusão/comercialização, até exportação.
O pensamento de Celso Furtado é bastante recorrente no Plano da Secretaria da Economia Criativa. Qual a importância do autor como referência teórica para a definição do plano de ação da Secretaria?
A passagem de Celso Furtado pelo Ministério da Cultura foi meteórica, tendo durado apenas dois anos. Mas percebe-se, claramente, uma compreensão e uma formulação de política voltada para o desenvolvimento regional. Gosto muito de pensar a cultura como eixo de desenvolvimento regional: como a cultura pode apoiar o desenvolvimento da Amazônia? Por que o Nordeste brasileiro, que é um Nordeste feito à mão, um Nordeste do artesanato, não é uma referência, como é o Vale Sagrado dos Incas, no Peru, cujo artesanato é importante e movimenta um turismo de qualidade? Por que a arquitetura brasileira não é reconhecida e valorizada fora do Brasil, com os brilhantes arquitetos que temos? A moda brasileira poderia ser uma referência no mundo. Por que não é? De que forma a Economia Criativa pode ajudar as indústrias tradicionais? Como a moda ajuda a confecção? Como o design ajuda a movelaria? São tantas perguntas que eu tenho. Tenho muito mais perguntas do que respostas.
O Ministro Celso Furtado percebia esse potencial. Em 1959, ele criou um departamento na Sudene chamado Artene. Ele dizia que o Nordeste brasileiro tinha um ativo cultural importante. E falava: “Olha, só podemos pensar em ciência e tecnologia se imaginarmos que isso é para todos”. O discurso do Celso é completamente anti a indústria cultural que aí está, uma indústria que não permite nem o protagonismo nem o acesso. Veja como evoluímos pouco nos marcos legais, como o avanço na discussão de conteúdo das televisões é ainda tão pequeno e tão conflituoso. O que vemos hoje na TV não é o Brasil; o conteúdo produzido não é brasileiro; o cinema brasileiro vive uma adolescência, mas tem uma dificuldade enorme de encontrar espaço de distribuição. São muitas as lacunas que temos de resolver. Celso Furtado antevia isso há 50 anos.
De que forma a cultura pode contribuir com o desenvolvimento econômico do país, sem que seja necessária sua adequação aos interesses do mercado?
Não podemos tratar os setores da Economia Criativa da mesma forma. Alguns setores têm, por natureza, grande possibilidade de obter sustentabilidade econômica. No caso deles, a profissionalização, o aprimoramento da logística de distribuição e a criação de marcos regulatórios podem transformar o Brasil num exportador de bens culturais. Hoje, não temos uma legislação aduaneira favorável à circulação dos nossos produtos. Pelo contrário, somos fechados. Nossos estilistas, quando vão às grandes feiras de moda do mundo, levam as roupas em suas malas, com medo da alfândega, porque se forem pegos com aquilo terão que pagar impostos. Por que o Brasil não consegue criar condições para que essa produção cultural saia do país?
Por outro lado, há setores que não têm grande possibilidade de obter sustentabilidade econômica, mas possuem uma imensa sustentabilidade social. É como se fossem cimentos que “colam” uma sociabilidade, promovendo a solidariedade comunitária, e por isso é preciso investir neles. Foi o que eu disse à presidenta Dilma quando estive com ela. Ela falava: “Mas isso não tem sustentabilidade”. E eu respondia: “Presidenta, a moda brasileira tem tudo para ter; o design brasileiro tem tudo para ter; a gastronomia brasileira tem tudo para ter; agora, há setores que não têm mesmo; e não interessa que não tenham, porque se estamos falando de uma economia, temos um espectro tão grande de setores que aquilo que se sustenta deve segurar aquilo que não se sustenta, pois todos são importantes”.
Existe certa disputa envolvendo a relação entre Estado e cultura. Enquanto uns dizem que o Estado deve ter uma presença forte no mundo da cultura, outros afirmam que o campo cultural diz respeito apenas aos indivíduos. Como deve ser a atuação do Estado na área da Cultura de forma que, por um lado, políticas públicas permitam o pleno desenvolvimento cultural e, por outro, não direcionem ou inibam a espontaneidade das práticas?
Uma coisa que nos aprisiona muito é essa visão maniqueísta: ou o Estado é superpoderoso e intervém em tudo, ou o Estado não está.
De 2003 a 2006, fui Secretaria de Cultura do Ceará. Na época, queríamos compreender as vocações regionais e decidimos mapeá-las. Rapidamente, fomos reunindo informações e conhecimento a respeito delas. Os Inhamuns, por exemplo, revelaram uma grande vocação para os espetáculos de rua. O Cariri, ao sul do Ceará, por sua vez, apresentou uma relação muito forte com os mestres da cultura popular. Esses desenhos iam se fazendo e surgiu, então, a ideia de promovermos festivais organizados por linguagens artísticas, onde poderíamos trabalhar formação e, ao mesmo tempo, dar a conhecer aquela região num calendário turístico cultural do estado.
A questão era que ninguém sabia fazer aquilo, pois não havia produtores culturais. “Ah, o Estado não pode se meter”. Não! Metemos a mão, e não me arrependo, de forma alguma, de ter feito isso. Levávamos aquela expertise da produção cultural para formar pessoas para que, em seguida, aquilo fosse apropriado por elas.
Acho que o Estado pode e deve entrar quando não houver possibilidade, quando não houver expertise, quando não houver profissionalismo em determinado setor da cultura que impeça que aquilo floresça. Por isso, acho que o Estado tem também uma tarefa pedagógica. Acredito na intervenção do Estado no sentido do “fazer com”, “fazer junto”. Não é o fazer de cima para baixo. Isto, para mim, é política pública: o Estado e a sociedade civil, atuando em conjunto.
A Secretaria da Economia Criativa possui grande interface com uma série de ministérios: Desenvolvimento Social, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ciência e Tecnologia, Turismo, Meio Ambiente, Justiça, Fazenda, Desenvolvimento Agrário, Cidades, Esportes, Educação, Trabalho e Emprego, Relações Exteriores. Por que motivo optou-se pela institucionalização do vínculo, especificamente, com o Ministério da Cultura?
É engraçado, mas, em minha visão, a institucionalidade de uma Economia dentro do Ministério da Cultura deveria fortalecer esse ministério. Não sei se é o que está acontecendo ou se estamos contribuindo para isso de alguma forma, mas quando pensamos aquilo que queríamos que a Secretaria fosse daqui a dez anos, definimos que ela deveria colaborar para deslocar o Ministério da Cultura para uma discussão mais estratégica sobre o desenvolvimento do Brasil, pois ele ainda é visto como um ministério de eventos, de fomento às artes, através da Funarte, ou de implantação da política de leitura, através da Biblioteca Nacional.
No mundo, as secretarias de Economia Criativa nem sempre estão na Cultura. Elas podem estar na Ciência e Tecnologia, na Educação, no Desenvolvimento Econômico. Em alguns casos, elas estão nos ministérios mais voltados à indústria. Como é uma temática transversal, há uma variedade enorme de institucionalidades.
Gosto do fato da Secretaria estar no Ministério da Cultura, mas não sei se ela vai crescer na Cultura ou se vai se deslocar para outro Ministério. Se estivesse no Ministério do Trabalho e Emprego, no Ministério da Educação ou no Ministério da Ciência e Tecnologia, poderia estar muito bem. O importante é ter clareza do que significa essa visão de desenvolvimento.
Qual a importância do estabelecimento de indicadores confiáveis para mensurar o impacto econômico dos setores criativos na formação do PIB brasileiro? De que forma a criação da Conta Satélite da Cultura, ferramenta contábil que visa sistematizar informações sobre atividades econômicas relacionadas aos bens e serviços culturais, pode contribuir com esse processo?
Uma das dificuldades das políticas públicas de cultura no Brasil é a ausência de dados, e, sem dados, as políticas tornam-se sazonais e voluntariosas. Nesse sentido, um dos grandes desafios da Secretaria é tentar descobrir o quanto uma economia de pequenos empreendimentos formalizados pode movimentar.
O esforço da conta satélite é muito interessante, porque conseguimos retomar uma relação com o IBGE. Ainda devemos construir uma relação com o IPEA, pois além do dado do campo, precisamos de uma pesquisa qualitativa, mas fico feliz com essa primeira etapa. A partir dela, vamos poder, pelo menos, partir de uma base de dados relevante para estabelecermos nossas metas. Evidentemente, o Produto Interno Bruto jamais medirá todas as externalidades positivas da cultura no desenvolvimento do país, pois há vários impactos que não são mensuráveis pelas métricas que temos. Mas é importante partirmos de algo.
Acredito que, nesse momento, instituições de pesquisa, fundações e universidades têm um papel fundamental. Precisamos de um exército de pesquisadores capazes de mapear e nos dar a conhecer um pouco dessas vocações para que possamos agir de forma mais efetiva. É preciso que tenhamos instrumentos de direcionamento e monitoramento de políticas, pois é tudo muito solto. Fazemos, mas não sabemos, não medimos, não compreendemos o impacto. Com isso, perde-se muito em tempo, em recursos humanos e em recursos financeiros.
De que forma o Sesc São Paulo pode contribuir no desenvolvimento de ações na área de Economia Criativa?
O Sesc tem um excelente trabalho de difusão e de circulação, assim como um trabalho voltado à educação, e tem sido um grande parceiro do Ministério da Cultura. Essa parceria é indispensável, e precisamos encontrar formatos para realizarmos mais juntos. O grande óbice de tudo isso é o nosso direito administrativo. Essa é uma reflexão que temos de fazer, porque o Estado está refém dele mesmo. Nós, hoje, podemos fazer muito pouco em termos de parceria com quem não é governo, o que dificulta a relação com instituições como o Sesc, com quem gostaríamos de fazer muito mais. Mas há inviabilidades legais. Fico muito preocupada com a situação do Estado brasileiro. Todos estão sob suspeita. Ganhou a lógica invertida, perversa, de que, em princípio, todas as pessoas jurídicas merecem a nossa suspeição. O Estado, então, se fecha para a sociedade civil, e isso é lamentável.
Em minha opinião, não iremos longe se continuarmos com as amarras administrativas que, atualmente, imobilizam a gestão pública brasileira. Por mais empreendedor, ativo e dinâmico que seja o gestor, hoje, ele faz muito pouco perto daquilo que gostaria de fazer. E se ele fizer? Terá que prestar contas, por sua ousadia, ao tribunal de contas da união, do estado ou do município. Estou fazendo essa reflexão porque acho que ela é importante para a gestão pública brasileira com um todo – não só cultural. Estamos, de certa forma, em uma camisa de força, e isso não é bom para o país.
No momento em que você era Secretária de Cultura do Ceará, o estado foi o primeiro do país em que todos os municípios aderiram ao Sistema Nacional de Cultura. Qual a importância do engajamento dos municípios no Sistema para a implementação de políticas públicas na área da cultura?
O grande perigo do Sistema Nacional de Cultura é ser sempre uma abstração, uma coisa que as pessoas não entendem muito bem para que fazem e porque devem aderir. Como a Secretaria da Economia Criativa tem como missão formular e implementar políticas para o desenvolvimento local, promovendo a relação entre cultura e desenvolvimento, acho que sua visão contribui para dar concretude a esse sistema. Não adianta assinarmos adesões para a criação de fundos e conselhos e fazermos planos se não houver um conteúdo explicitando quais recursos virão para quais competências de quais entes federados.
São tantas as questões que envolvem o Sistema Nacional de Cultura que, na verdade, a adesão é, por enquanto, um ato de fé. Entre 2003 e 2006, quando era Secretária de Cultura do Ceará, eu dizia para os prefeitos: “Prefeitos, vocês têm que aderir”. Eles perguntavam: “Mas para quê, Secretária?”. Eu respondia: “Prefeito, isso aqui é um ato de fé no Ministro Gilberto Gil e no Governo Lula; nós vamos ter que fazer isso, pois é uma construção para o futuro; não vou lhe enganar, essa adesão não vai trazer recursos para o seu município, mas precisamos começar a exercitar uma relação integrada, mais próxima, entre União, estado e município para pensarmos políticas de cultura”.
Mas não basta aderir ao Sistema, precisamos dar concretude, conteúdo e vitalidade a ele. E essa tarefa envolve todos: o campo cultural, os juristas, os políticos, os pesquisadores.
A valorização de práticas culturais e a transformação dos produtos a elas relacionados em ativos econômicos acabam gerando a apropriação de saberes de grupos tradicionais por grandes empresas, a profusão de cópias e disputas em torno da autoria das criações. Ao ignorar o direito autoral (copyright) na construção do conceito brasileiro de Economia Criativa, o Estado não deixa de oferecer proteção aos conhecimentos de camadas fragilizadas da sociedade?
Penso nisso todos os dias. Qual é o ponto desse doce? Você vai mexendo, vai mexendo, até onde você pode mexer para o doce não desandar? Até onde vai essa proteção? Nosso direito autoral é do século XIX. Hoje, nossa legislação de direito de autor é, talvez, das mais antigas e conservadoras entre os BRICS. Precisamos dar um passo para chegarmos ao século XXI.
Entendo perfeitamente que aquilo que incomoda o Alexandre Herchcovitch incomoda também o Mestre Espedito Seleiro, porque ambos são criadores. Não é porque um deles é mais festejado, mais televisivo e mais reconhecido que o outro não seja impactado pelos mesmos problemas.
Os recentes avanços da ciência e tecnologia nos colocam diante de impasses em relação ao que é o bem pirata. Nos EUA, com a visão da ACTA, da PIPA, eles se debruçam intensamente sobre essas questões porque ganham muito dinheiro com isso. É esse o modelo do Brasil? É essa a discussão que temos de fazer aqui? Eu penso que não. O Brasil é um país capaz de dizer: “Não ganhamos por aqui, mas ganhamos por ali”, “Não vamos ganhar vendendo CDs, mas vamos ganhar com os shows”, “Vamos ganhar com o número de vezes que a música for baixada”.
Espero que a Secretaria contribua para trazer à tona essas reflexões, pois é isso mesmo: o cupuaçu, as nossas frutas amazônicas, acabam sendo levadas por grupos transnacionais que vão trabalhar com a farmacologia. Temos problemas gravíssimos que envolvem a riqueza da nossa biodiversidade natural com consequências imensas para a nossa biodiversidade cultural. Não há mais diferença entre natureza e cultura, e as implicações disso para a questão da propriedade intelectual são muito sérias. Esse é um dos grandes desafios que o Brasil vai ter que enfrentar nas próximas décadas.
O que é o Plano Brasil Criativo? Quais os seus principais desafios?
Quando construímos o Plano da Secretaria da Economia Criativa, rapidamente entendemos que se agíssemos de forma um pouco mais ampliada, na transversalidade das políticas entre partes de ministérios, poderíamos ter um plano de governo, maior do que o Plano da Secretaria. Foi aí que surgiu essa brincadeira que fala sério de chamar um plano que não fosse só do Ministério da Cultura de Brasil Criativo, parodiando os planos Brasil Maior, do Ministério de Ciência e Tecnologia, e o Brasil Sem Miséria, do Ministério do Desenvolvimento Social.
Como percebemos que não iríamos conseguir construir isso em dois anos, estamos tentamos criar alguns programas estruturantes para que esse plano possa acontecer um dia.
Penso que aí deixamos a semente de uma Secretaria. Pode ser que a Secretaria ainda não tenha nem nascido. Mas, talvez, essa fase anterior ao nascimento, o desenho de sua arquitetura e o estabelecimento de parcerias fundamentais é que vai fazer com que o próximo Secretário tenha um pouco mais de apoio para que ele possa ir mais além. Não se poderia fazer muito mais do que estamos fazendo, mas sinto-me feliz com os primeiros passos que demos. São passos pequenos, mas consistentes. Um Brasil criativo? Talvez daqui a vinte anos. Tomara que eu esteja viva para ver.
Entrevista: Daniel Douek
Foto: Dani Ribas
Entrevista realizada no dia 3 de maio de 2013, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.
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