As questões de gênero têm se destacado no debate social e político da contemporaneidade. Novas reflexões acerca do feminismo ganharam impulso e ocuparam campos diversos, muitos deles vistos comumente como espaços libertários. Um desses campos é a cultura. Nesse contexto, a programação cultural da cidade tem espelhado as pautas feministas, apontado discussões e inquietações e proposto novos olhares.
O campo da cultura e das linguagens artísticas é estopim de acirrados debates. Ainda que haja intenção de ser esta uma esfera de livre expressão para todos os fazedores de cultura (e de que um farto espectro de profissionais faz parte), existe uma demanda pela ampliação de perspectivas. É nesse ambiente que ressurgem as redes de mulheres como espaços de ampliação do discurso, do acesso à informação e de maior interação. Sobre o impacto das redes sociais para o feminismo, disse Djamila Ribeiro:
“A mídia hegemônica, de certo modo, ainda nos ignora. Mas muitas denúncias que surgem pelas redes sociais ganham espaço e, às vezes, até pautam a mídia hegemônica. É um espaço de militância muito importante quando bem utilizado e com estratégia. Em relação ao feminismo negro, foi um espaço onde fomos capazes de existir, de falar a partir das nossas narrativas e visões. Passamos a disputar narrativas de um modo mais amplo.”
Djamila Ribeiro, feminista negra, pesquisadora na área de Filosofia Política, foi secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo/SP (Disponível aqui)
Na área teatral não poderia ser diferente. Lugar de pura expressão de corpo, de narrativas e de poéticas, o teatro carrega algumas premissas e “certezas” que podem reproduzir práticas machistas de invisibilização e abafamento de opressões. “No teatro não se vê gênero, se avalia a qualidade artística”: falácia ou inocência? Embora a presença de mulheres nos textos dramatúrgicos, nos palcos, na produção e na área de comunicação teatrais possa induzir à generalização sobre sua participação na cadeia produtiva, refutar a existência de tais modos machistas de agir choca-se com a crescente demanda profissional de mulheres por mais espaço, mais status e mais recursos financeiros.
Sob essas circunstâncias nascem grupos formados exclusivamente por mulheres: ambientes “seguros” para a discussão de pautas ligadas a processos criativos, mas também sobre mercado de trabalho (acesso, permanência e remuneração), assédios e abusos físicos e psicológicos, ensino e formação e disputa por espaços decisórios de narrativa e representatividade.
Um desses grupos é o Mulheres do Teatro Brasil, criado pelas gestoras culturais Carol Marinho Martin e Luane Araujo em maio de 2017 nas redes sociais. Inspirado no Mulheres do Audiovisual Brasil, criado pela produtora cultural Malu Andrade em 2016, o grupo tem como propósito criar uma rede de contatos entre as mulheres da área teatral de todo o Brasil, visando o fortalecimento do diálogo para a organização, articulação e planejamento de ações.
Cabe ressaltar que tanto o MTB quando o MAB tem como “membras” mulheres cisgêneras, mulheres transgêneras e homens transgêneros. Além disso, a diversidade de cores, origens, raças, etnias, idades, situações econômicas, sociais e profissionais é um pressuposto ético para o encontro e a relação entre tais pessoas. Descabe falar em uma suposta “segregação masculina”: o histórico excludente do gênero feminino do poder institucional deixa clara a falsa simetria. Na prática, os grupos em redes sociais facilitam tais encontros e relações, pois possibilitam que as mulheres tenham voz:
“Às vezes a fala, as palavras, a voz mudam as próprias coisas, quando trazem a inclusão, o reconhecimento, a reumanização que anula a desumanização. Às vezes são apenas as condições prévias para mudar regras, leis, regimes e trazer justiça e liberdade. Às vezes, a mera possibilidade de falar, de ser ouvida e ser acreditada é parte essencial do pertencimento a uma família, uma comunidade, uma sociedade. Às vezes, as nossas vozes destroçam essas coisas; às vezes, essas coisas são prisões. E então, quando as palavras rompem o indizível, o que era tolerado numa sociedade às vezes passa a ser intolerável.”
Rebecca Solnit em “A mãe de todas as perguntas: Reflexões sobre os novos feminismos”, Companhia das Letras, São Paulo, 2017, p. 30)
Além do virtual, reuniões presenciais sugerem um outro tipo de dinâmica para o debate. É o que o encontro “Mulheres e a linguagem teatral: articulações em redes” buscará no próximo dia 21 de outubro de 2017, das 14h às 17h, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo.
Na ocasião, serão apresentados os projetos Mulheres do Teatro Brasil e The Magdalena Project, rede dinâmica e intercultural de mulheres no teatro e na performance.
Serão abordados aspectos como pesquisas e produção de dados sobre o mercado de trabalho para mulheres na área cultural e teatral, em especial sobre disparidades entre mulheres e homens quanto a salários, oportunidades, presença e representatividade em comissões de prêmios e editais de financiamento público, e como tais dados podem pautar alterações legislativas e jurídicas.
Será também apresentada a última pesquisa do "Observatório da Igualdade entre Mulheres e Homens na Cultura e Comunicação", realizado anualmente pelo Ministério da Cultura da França e que avalia a evolução da paridade entre mulheres e homens por meio de políticas públicas, propostas jurídicas e pelo engajamento das instituições culturais. A apresentação do estudo visa fomentar análises análogas ao contexto brasileiro.
A construção coletiva de redes de proteção e comunicação expressam na contemporaneidade o caráter libertador e transformador da arte. Para além da rede virtual, fica o convite a mulheres e homens de todos os gêneros para o encontro presencial e a troca de afetos e afetações como disparador de novas perspectivas e novas articulações para o combate às disparidades.
Carol Marinho Martin
Luane Araujo
Gestoras culturais e articuladoras do movimento Mulheres do Teatro Brasil