Entrevista com Zé Celso Martinez
José Celso Martinez Correa é dramaturgo e diretor do Teatro Oficina.
No dia 27 de julho, estreiou no
Sesc São José dos Campos a encenação
Cacilda!!! Glória no TBC – Capítulo 1, peça musical sobre a vida e a obra de Cacilda Becker, que foi encenada também no
Sesc Araraquara e
Sesc Sorocaba. O diretor José Celso Martinez Corrêa está eufórico. “Em duas semanas, o Brasil mudou! Nós vamos estrear em São José dos Campos já com essa coisa completamente nova”.
Num final de tarde, durante um ensaio no Teatro Oficina há quinze dias da estreia, Zé Celso recebeu a equipe do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc de São Paulo para uma entrevista que se transformou num grande depoimento sobre questões contemporâneas. Era uma prévia do encontro “Em primeira pessoa”, realizado no dia 16 de julho na unidade.
As manifestações que tomaram as ruas do país, a situação do teatro brasileiro, o ano de 1968, a politica de combate às drogas, a cultura patriarcal e as disputas do Teatro Oficina com o Condephaat e com o Grupo Silvio Santos pelo terreno do entorno estiveram na pauta. “Estou vomitando 2013. Você está tendo um privilégio fora do comum, é a primeira vez que estou falando”. Confira os principais trechos da entrevista!
“Em duas semanas, o Brasil mudou”
Faz duas semanas que mudou tudo no Brasil. Nós estávamos ensaiando Cacilda!!! - Glória no TBC. Tínhamos pronto o primeiro e o segundo ato, direitinho. Começava na inauguração do TBC, depois ia para o Nick Bar. Mas o que aconteceu? Percebemos que a peça não estava falando suficientemente sobre o aqui e agora. O Brasil sofreu uma transformação muito grande. Retornou um espírito de aqui e agora, uma coisa que é “1968”. Então, o que nós fizemos? Alguns dias antes da estreia, resolvemos fazer a segunda parte da Cacilda!!!! 68.
Essa peça está nos dando uma força enorme. Em duas semanas, o Brasil mudou. Tudo mudou, e tudo tem que mudar. Então, nós vamos estrear em São José dos Campos já com essa coisa completamente nova. Procurei reatualizar a peça, mesmo furando o tempo. Agora, nós estamos entusiasmadíssimos. Os ensaios estão rendendo muito, está muito bom. Iremos levar uma coisa muito nova para o interior e, depois, aqui para São Paulo. Eu estou muito feliz.
“Pode acontecer de tudo”
Não sou otimista. Pode vir uma coisa horrenda. Pode acontecer de tudo, ninguém sabe, mas que não vai ficar na mesma, não vai, porque, realmente, é mundial. Não é só no Brasil, é no mundo inteiro. Cada país tem suas especificidades, mas o tipo de sufoco que o capitalismo está impondo na sociedade, chega um ponto em que não está se aguentando mais.
“Tem que ter cultura nos quarteis”
O que é importante nesse momento é uma transversalidade da cultura. Tem que ter cultura, por exemplo, nos quarteis, entre os soldados, marinha, aeronáutica, exército, PM. PM é uma coisa que a OEA, por exemplo, é contra. É o maior resquício da ditadura.
“O teatro de São Paulo está absolutamente desvalorizado”
Os R$ 0,20 foram uma metáfora para o passe livre de tudo, inclusive do teatro. A situação do teatro que é ligado às raízes, o teatro de transformação, está completamente comprometida do ponto de vista financeiro. O que domina é um teatro totalmente dependente do marketing da televisão. Algumas pessoas de televisão se juntam ao capital, concentram o capital, e fazem aquelas peças ligadas à TV Globo. Os outros teatros, como o Vertigem, como o teatro dos Parlapatões, o Satyros, o Latão, esses milhares de teatros novos que estão fazendo um trabalho maravilhoso na cidade, inclusive trabalhando a cidade, estão com uma dificuldade enorme. Se não fosse o Sesc, não existiria mais. O Danilo Miranda está sendo nosso Ministro da Cultura. Eu não estou puxando o saco, não, é verdade: se não fosse o Sesc, o teatro de São Paulo não existira mais, porque ele está absolutamente desvalorizado. E, no entanto, o teatro é a coisa que, nesse momento, é de maior valor.
“'Eu não vou construir uma arena para o ego do Zé Celso'”
Era no teatro que as pessoas se encontravam na Antiguidade, nas ágoras. Nós queremos fazer uma ágora aqui do lado, uma praça pública nesse terreno pelo qual estamos lutando até hoje. Hoje, a própria diretora do Condephat de São Paulo passa por cima do tombamento do Iphan e permite ao Grupo Sílvio Santos que construa torres de novo. Isso porque – fazendo wikileaks – o Tommy Pietra, que é nosso encarregado da área de vídeo, que faz o nosso site, estava numa piscina... Numa beira de uma piscina, a diretora do Condephaat disse: “Eu não vou construir uma arena para o ego do Zé Celso”. Ela passou por cima do Flávio Império, do Aziz Ab’Saber, que fizeram laudos maravilhosos sobre o tombamento do entorno. Estamos negociando ainda, mas, ao mesmo tempo em que a gente negocia a troca de terreno com o Sílvio Santos, tem um setor do grupo que avança e começa a querer reconstruir as torres em volta. Esse impasse é o impasse que agora faz parte desse tempo.
“Nós vamos assimilar as épocas”
Estávamos ensaiando Cacilda!!!, mas não estávamos satisfeitos. Interrompemos e fizemos dois dias de Acordes como manifesto cultural. Semanas depois, fizemos o Cultura Atravessa, que começou a reunir todos os artistas de São Paulo, de todas as áreas. Não só artistas, intelectuais; não só intelectuais, mas pessoas jovens, estudantes, Passe Livre, veio todo mundo nesse primeiro encontro. Tinha muita gente aqui. E esse movimento vai continuar. No segundo ato de Cacilda!!!, nós vamos retornar a 1968 em 2013. Isso que eu contei do Condephaat vai entrar. Esse personagem vai entrar ao lado de Conceição da Costa Neves, que era uma deputada de origem portuguesa, ex-atriz, que chegou aqui no Brasil e se tornou uma mulher direitista terrível. Ela foi uma das incentivadoras do ataque do CCC a Roda Viva. Nós vamos assimilar as coisas, as épocas.
“Embarquei numa viagem dessa cultura transformadora”
Meu corpo tem 76 anos, e nesses 76 anos, esse corpo passou por várias transmutações. Desde que nós fomos dispensados da aula, quando eu era garoto, para ouvir a notícia do suicídio do Getúlio, e que o povo todo saiu às ruas e ele deixou uma carta-testamento, desde aí eu embarquei numa viagem dessa cultura transformadora. Em 1963, nós estávamos fazendo Pequenos Burgueses. Uma agitação enorme veio e trouxe o primeiro golpe. Em 1967, retomamos a antropofagia de Oswald de Andrade e, com isso, a cultura conseguiu nos unificar, todos, sincronicamente, apesar da terra estar em transe. Glauber fazia Terra em Transe; Caetano veio ver a estreia do Rei da Vela aqui e falou: “Minha composição mudou a partir de agora”; Helio Oiticia fazia Tropicália. Uma série de coincidências. Sincronias. Mas, de repente, Oswald de Andrade conseguiu dar uma leitura muito simples disso, um retorno à antropofagia. Aí entraram os índios em cena, entraram os africanos em cena, porque antes era tudo teatro branco, com pessoas brancas num palco. Aí, a partir dessa época, Roda Viva veio, os meninos de 1968 invadiram o palco, a plateia não tinha limites, tocaram no público, era aquela geração que tinha no corpo todas as culturas que, depois, foram se esfacelando, depois que veio o AI5. Aliás, a gente estreou o Galileu Galilei no dia do AI5, depois que o pessoal voltou ferido de Roda Viva e de terem sido massacrados pelo exército – botaram no ônibus e entregaram aqui. Então, a gente falou: “Não dá, tem que ser outra coisa”. Fizemos Galileu Galilei. Uma peça que a gente achava que demoraria um ano inteiro para fazer, não sei quantos séculos de pesquisa, fizemos em 15 dias. Como agora. Estreou no dia do AI5. Nós estreamos com uma grade na frente da gente. Aí eu fui participar da Revolução Portuguesa, depois que eu fui torturado, exilado, fui participar da Revolução Moçambicana. Com o Rei da Vela, nós estávamos na França em maio de 1968. Voltamos ao Brasil, pegamos o maio de 1968 no Brasil, fomos para a passeata dos 100 mil. A minha natureza está muito mais essa.
“Minha cabeça voltou!”
Hoje, eu voltei a estranhar. Por exemplo, se estou ouvindo a CBN, eu adoro, mas eu começo a ouvir aqueles anúncios e começo a ouvir aquela linguagem e, porra, não dá mais! Mudou tudo! Minha cabeça voltou! Eu sempre fui muito acusado por ser, como dizem os franceses, soixante-huitard, “sessenta e oitoso”. “Ah, esse cara é 1968”. Sou mesmo! Porque 1968 é aqui e agora. Está sempre aqui e agora, está sempre em movimento, está sempre vivo. Eu lutei e consegui uma porrada de coisas – com uma dificuldade incomensurável.
“A nossa vida é dificílima, mas deu um salto agora”
Minha casa está uma bagunça; a cozinheira não vai, por causa de todas essas confusões, ela também está doente, então, nossa, está uma bagunça. Eu tenho que nadar, nadar, nadar, para chegar aqui na hora, ensaiar. Aí é uma delícia. Mas, hoje, só vai poder ir até a meia noite, porque os músicos tem que sair... A nossa vida é dificílima, mas deu um salto agora. É isso que a gente vai levar para o interior. Eu estou muito contente. Acho que é isso que as cidades estão querendo. O Brasil inteiro está querendo, porque é tudo múltiplo. Até os índios se movimentam ao mesmo tempo, por causa da internet. Antes, aliás! Eles começaram antes de todo mundo. Antes de junho, eles estavam se manifestando pelo Brasil inteiro, ao mesmo tempo, na mesma hora, juntos. Maravilha. Depois, vieram os estudantes. E nós nunca deixamos de lutar para que acontecessem momentos assim, que são os momentos em que vibra a arte, vibra a cultura.
“Tem que ter cultura em tudo”
Está faltando a presença da cultura. Hoje, as reivindicações são muito corporativas. A cultura interliga tudo. Tem que ter cultura em tudo. O Alfredo Bosi escreveu um artigo maravilhoso, acho que na Carta Capital, sobre a transversalidade da cultura. Não melhora o trânsito se não tiver, na direção do trânsito, uma injeção de percepção cultural contemporânea.
“Não existe educação sem cultura”
Não existe educação sem cultura. Com a educação, você pode criar um rebanho, mas com a cultura é impossível, porque a cultura desperta o espírito crítico, desperta o utópico, desperta o sonho, a poesia, a liberdade, e faz você entender através das máscaras sociais. Você passa a entender o coletivo. Você não vai ficar vendo só do ponto de vista da sua categoria, da sua classe. Você começa a ver as coisas de outra maneira.
“O que ajudou a levantar a Revolução Soviética de 1917 foi a cultura”
[Franklin Delano] Roosevelt, numa época de crise, como essa, foi muito inteligente. Ele espalhou a cultura pelos EUA inteiro. Grupos de teatro circulavam, deu um apoio total. Não só o teatro, o cinema, tudo. Ele deu um apoio para isso, ele entendeu isso. Como também na primeira fase da Revolução Russa, que foi maravilhosa. Era Maiakóvski, era Meyerhold, que estavam totalmente ligados nessa coisa. A cultura mais avançada do mundo. A cultura pública mais avançada foi na primeira fase da Revolução Russa. Depois, veio Stálin e fudeu tudo. O que ajudou a levantar a Revolução Soviética de 1917 foi a cultura, foi Maiakóvski, foram os artistas plásticos. Eu tenho uma afinidade enorme com essa época.
“Quero que essa praça seja dos grandes movimentos dessa época”
Felizmente, eu estou na arquitetura da Lina Bardi. A gente atravessou e foi para essa praça que tem em torno. E essa praça conquistou o movimento. Eu quero que essa praça seja dos grandes movimentos dessa época, do MPL (Movimento Passe Livre), da cultura, dos artistas. Não tem nada a ver com o ego do Zé Celso.
“Se fazem de mim um mito, o problema não é meu”
Eu me chamo “Zé”. E se fazem de mim um mito, o problema não é meu. O problema é que a mídia não consegue ver esse trabalho que acontece aqui. Coincidiu de eu ser o que ficou ligando tudo. Eu não deixei cair a bola. Mas não deixei cair a bola há cinquenta e tantos anos, por quê? Porque eu sempre tive contato com a renovação. A própria luta com o Sílvio Santos foi maravilhosa, porque me permitiu a renovação. Então, eu estou nesse momento de euforia.
“O artista é outro, não é ele”
Acho que eu assumi o que eu sei. E o que eu sei não veio de mim, veio de fora. Porque eu sou outro. O artista é outro, não é ele. É o que veio de fora. Não é o meu ego, minha pessoa. A primeira coisa que a gente faz no teatro é quebrar com o ego. Porque você tem que estar aberto para receber das entidades os personagens, os coros.
“Teatro é democracia direta”
Eu sou apaixonado pelos coros, que não são os coros de musical americano, de levantar a perna na hora certa. São coros como o futebol, de indivíduos que jogam, que entram em contato com o público. Eu procuro incentivar o poder humano neles, eles se autocoroarem. De cada pessoa, emanar o seu poder. Teatro é democracia direta. Instantanérrima. E, hoje, com os meios todos da internet, isso é possível. Então, eu estou flanando nesse movimento. E à vontade, muito à vontade.
Como, realmente, existem todas as catracas, as jaulas, as coisas que fecham, você tem que ir driblando, driblando, driblando para emergir, dar o que você sabe e receber dos que sabem, dos que estão sabendo agora. Tem toda uma geração formada pela internet que se pluga à cultura de todos os tempos, à eternidade.
“Temos que dar um fim à guerra das drogas”
Temos que dar um fim à guerra das drogas. Pela madrugada, isso é uma vergonha. Drogas é para ser [assunto] do Ministério da Saúde, do Ministério da Cultura, é outra coisa. Aliás, todos esses pontos: droga, movimentos que surgiram com 1968, meio ambiente, liberdade sexual, amor livre, essa coisa toda precisa da cultura.
“O sistema patriarcal está desmantelado”
Quando o gay adota um filho, o escândalo que existe agora é porque ele destrambelha todo o sistema patriarcal. A revolução das mulheres começou, a dos homens continuou e, hoje, nós temos que rever tudo, porque o sistema patriarcal – um pai, um chefe, uma ordem – acabou. Ele está desmantelado. Ele está se sustentando com PM, com bomba atômica, com espionagem. Esse próprio instrumento que surgiu, ao mesmo tempo em que ele surgiu para espionar, ele surgiu, também, para libertar, para ver as coisas todas. Se eles veem, nós também vemos. E nós não precisamos ficar fofocando tanto quanto eles, porque a gente tem uma leitura mais rápida das coisas, através da magia, através da arte, através da ciência, através da tecnologia. E através da vida toda.
“A coisa mais importante no teatro é a descoberta do corpo”
A coisa mais importante no teatro é a descoberta do corpo. Você descobre o corpo coletivo, que eu sou igual a você, a você e a você, e nós nos trocamos, e nós temos uma energia imensa, que se comunica com a energia de todo mundo. Esses patriarcalismos, sejam eles “istas” ou “istas”, comunistas, ou capitalistas, ou fundamentalistas, ou evangélicos, castram isso. E a cultura veio para alimentar o poder humano de novo, com todas as contradições que o homem tem, que a mulher tem, que o ser humano tem. Não tem mais homem e mulher, é ser humano, é humano, é mortal. Humano mortal. Nós somos pessoas que estamos em plena viagem entre uma fase e outra. Todos os conceitos mudaram, e o teatro e a cultura trabalham exatamente nisso.
“Anarquismo é o oposto da bagunça”
Ninguém é tão estúpido de achar que sabe tudo. A vida é um mistério. Eu acredito em tudo. E, ao mesmo tempo, não acredito em nada das igrejas, nada que está no centro do mundo. Não acredito em porra nenhuma: em Papa, padre, chefe de partido, nada, nada, nada. Como o Artaud fala, “o ator é um anarquista coroado”. Anarquismo é o que organiza as coisas espontaneamente. É o oposto da bagunça. Aqui nós somos super organizados. Mas vamos parar por aqui, senão eu não paro.
Entrevista: Daniel Douek
Foto: Jennifer Glass
Entrevista realizada no dia 12 de julho de 2013 no Teatro Oficina.
*Editada em 17 de julho de 2013.
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