Adolescente descabelada, ganhei o livro Tu não te moves de ti das mãos da própria Hilda Hilst. Eu devia ter uns 13 anos. Este vertiginoso texto em prosa poética foi meu ponto de partida no universo literário de Hilda Hilst.
Lembro do impacto da minha primeira entrada na Casa do Sol, morada da poeta nos arredores de Campinas. E que biblioteca fabulosa ela tinha! Durante esses anos, muitas estórias engraçadas com Hilda. Avessa às badalações e ao “beija-mão” das rodas sociais, ela não queria comparecer aos lançamentos dos seus próprios livros.
Algumas vezes fui enviada para representá-la (como se isso fosse possível!) e aceitei o desafio, sempre movida pelo prazer imenso de dizer seu texto. Àquela altura, eu era uma jovem poeta recém graduada em Artes Cênicas, dando os primeiros passos no teatro, na poesia e na música. Convidada para interpretar os textos de Hilda em público, encarava aquilo como missão!
Hilda era informada na Casa do Sol sobre o “sucesso” da empreitada, e assim crescia uma confiança nesta estratégia. Até o momento em que a televisão entrou no meio...
Escalada para mais uma vez dar voz aos textos de Hilda, insisti, e a equipe da tv também, em contar com a presença da autora. O pessoal da Tv foi até a Casa do Sol, com cabos, cameras, refletores, parafernálias.
Lá chegando, ouviram finalmente a voz de Hilda, em carne, osso, ironia e mordaz lucidez: “Eu, aparecer na televisão, agora já velha? Para quê?!? Eu queria ter aparecido quando eu era jovem e bonita. Não tenho mais nenhum interesse na tv; agora eu não fodo mais!”. Gargalhadas gerais.
Em 2000, Hilda completou 70 anos e o SESC SP reuniu seus amigos em uma bela homenagem com ciclo de leituras e exposição no Pompeia. Foi a última vez em que estive pessoalmente com Hilda. Depois fui estudar em NY, e quando voltei, ela já partia para Marduk. Escrevi este poema em homenagem a ela:
os cupins me trouxeram de volta ao Brasil
eu nem pensava em voltar
atravessava o Central Park de bicicleta
com a alma encharcada de jazz
um telefonema anunciava a tragédia bibliográfica:
os cupins comeram Clarice Lispector
abocanharam infernalmente Gregório de Matos
eles devoraram todo Guimarães Rosa
eles mastigaram meu Oswald de Andrade, que maldade!
cupins gostam de comer obras completas
cupins destroçam palavras em banquetes
traças traçam todo tipo de prosa
essa praga me jogou dentro de um avião
e aqui estou eu
náufraga
sobrou uma beirada de DH Lawrence
ficou a lombada de Herberto Helder
restou uma página de Wislawa Szymborska
cupins da espécie dos isópteros xenófobos
tem predileção alimentar por autores brasileiros - agora eu sei
voltei voando
abrindo caixotes de tempo
como um dom quixote tentando salvar sua biblioteca de vento
no mesmo dia Hilda Hilst se foi para Marduk
um eclipse sequestrava a lua
a Casa do Sol anoitecia
os cupins famintos comeram toda a poesia
Como ela faz falta! Sua obra é aberta, heterodoxa, plural, sincrética, supra-racional. A literatura de HH cria um fluxo selvagem, uma farra simbólica, afirmando que a centelha divina está no amor, na loucura, na poesia: “Um poema não se explica. É como um soco. E se for perfeito, te alimenta para toda a vida”. Agradeço o alimento da sua poesia; muito obrigada Hilda Hilst!
Por Beatriz Azevedo. Poeta, compositora, performer. Pesquisadora de Pós-Doutorado (Unicamp / Fapesp), Doutora em Artes da Cena, Mestre em Literatura pela USP, estudou Música no Mannes College of Music em Nova York.. Autora de Abracadabra (Demônio Negro, 2019), A.G.O.R.A. (Biscoito Fino, 2019), Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Cosac Naify, 2016), Idade da Pedra e Peripatético (Iluminuras), etc. Integra as antologias Ato Poético (Oficina, 2020), Dusie 21 the contemporary brazilian poetry edition (Dusie Press, San Francisco), o LP de poesia contemporânea Garganta (Azougue), o Lula Livro (Perseu Abramo), e Vinagre antologia de poetas neobarracos. Participa do livro Acabou Chorare, com textos de Arnaldo Antunes, Beatriz Azevedo, Caetano Veloso, Hermano Vianna e Xico Sá.
Confiram também o primeiro vídeo da série "Onde em nós a casa mora?" que traz o universo da escritora Hilda Hilst em um roteiro multimídia pela Casa do Sol, em Campinas (SP).