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Tu não te moves de ti
Hilda Hilst 90 anos

Tu não te moves de ti

Tu não te moves de ti

Adolescente descabelada, ganhei o livro Tu não te moves de ti das mãos da própria Hilda Hilst. Eu devia ter uns 13 anos. Este vertiginoso texto em prosa poética foi meu ponto de partida no universo literário de Hilda Hilst.

 Lembro do impacto da minha primeira entrada na Casa do Sol, morada da poeta nos arredores de Campinas. E que biblioteca fabulosa ela tinha!  Durante esses anos, muitas estórias engraçadas com Hilda.  Avessa às badalações e ao “beija-mão” das rodas sociais, ela não queria comparecer aos lançamentos dos seus próprios livros.

 Algumas vezes fui enviada para representá-la (como se isso fosse possível!) e aceitei o desafio, sempre movida pelo prazer imenso de dizer seu texto.  Àquela altura, eu era uma jovem poeta recém graduada em Artes Cênicas, dando os primeiros passos no teatro, na poesia e na música.  Convidada para interpretar os textos de Hilda em público, encarava aquilo como missão!

 Hilda era informada na Casa do Sol sobre o “sucesso” da empreitada, e assim crescia uma confiança nesta estratégia. Até o momento em que a televisão entrou no meio...

 Escalada para mais uma vez dar voz aos textos de Hilda, insisti, e a equipe da tv também, em contar com a presença da autora.  O pessoal da Tv foi até a Casa do Sol, com cabos, cameras, refletores, parafernálias.

Lá chegando, ouviram finalmente a voz de Hilda, em carne, osso, ironia e mordaz lucidez: “Eu, aparecer na televisão, agora já velha? Para quê?!?  Eu queria ter aparecido quando eu era jovem e bonita. Não tenho mais nenhum interesse na tv; agora eu não fodo mais!”.  Gargalhadas gerais.

Em 2000, Hilda completou 70 anos e o SESC SP reuniu seus amigos em uma bela homenagem com ciclo de leituras e exposição no Pompeia. Foi a última vez em que estive pessoalmente com Hilda. Depois fui estudar em NY, e quando voltei, ela já partia para Marduk.  Escrevi este poema em homenagem a ela:

os cupins comeram toda a poesia.

(Publicado no livro Abracadabra, Selo Demônio Negro, 2019)

 os cupins me trouxeram de volta ao Brasil

eu nem pensava em voltar

atravessava o Central Park de bicicleta

com a alma encharcada de jazz

 
um telefonema anunciava a tragédia bibliográfica:

os cupins comeram Clarice Lispector

abocanharam infernalmente Gregório de Matos

 

eles devoraram todo Guimarães Rosa

eles mastigaram meu Oswald de Andrade, que maldade!

 
cupins gostam de comer obras completas

cupins destroçam palavras em banquetes

traças traçam todo tipo de prosa

essa praga me jogou dentro de um avião

e aqui estou eu

náufraga

 
sobrou uma beirada de DH Lawrence

ficou a lombada de Herberto Helder

restou uma página de Wislawa Szymborska

 
cupins da espécie dos isópteros xenófobos

tem predileção alimentar por autores brasileiros - agora eu sei

 
voltei voando

abrindo caixotes de tempo

como um dom quixote tentando salvar sua biblioteca de vento

 
no mesmo dia Hilda Hilst se foi para Marduk

um eclipse sequestrava a lua

a Casa do Sol anoitecia

 os cupins famintos comeram toda a poesia

Como ela faz falta! Sua obra é aberta, heterodoxa, plural, sincrética, supra-racional. A literatura de HH cria um fluxo selvagem, uma farra simbólica, afirmando que a centelha divina está no amor, na loucura, na poesia: “Um poema não se explica. É como um soco. E se for perfeito, te alimenta para toda a vida”.  Agradeço o alimento da sua poesia; muito obrigada Hilda Hilst!

Por Beatriz Azevedo. Poeta, compositora, performer. Pesquisadora de Pós-Doutorado (Unicamp / Fapesp), Doutora em Artes da Cena, Mestre em Literatura pela USP, estudou Música no Mannes College of Music em Nova York.. Autora de Abracadabra (Demônio Negro, 2019), A.G.O.R.A. (Biscoito Fino, 2019), Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Cosac Naify, 2016), Idade da Pedra e Peripatético (Iluminuras), etc.  Integra as antologias Ato Poético (Oficina, 2020), Dusie 21 the contemporary brazilian poetry edition (Dusie Press, San Francisco), o LP de poesia contemporânea Garganta (Azougue), o Lula Livro (Perseu Abramo), e Vinagre antologia de poetas neobarracos. Participa do livro Acabou Chorare, com textos de Arnaldo Antunes, Beatriz Azevedo, Caetano Veloso, Hermano Vianna e Xico Sá.

Confiram também o primeiro vídeo da série "Onde em nós a casa mora?" que traz o universo da escritora Hilda Hilst em um roteiro multimídia pela Casa do Sol, em Campinas (SP).