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Apocalipticamente integrados ou integralmente apocalípticos?
Por Flávia Prando

Apocalipticamente integrados ou integralmente apocalípticos?

Quem trabalha com cultura está acostumado às mortes anunciadas. Talvez porque ainda estejamos sob o impacto causado pelo filósofo alemão que anunciou a morte de Deus, liberando-nos assim, moralmente, para assassinatos simbólicos.  Ou, talvez, porque ainda sejamos — embora neguemos de pés juntos — muito apegados às previsões apocalípticas de Adorno acerca da cultura de massa e da indústria da cultura. Enfim, seja qual for o motivo, acostumamo-nos a assistir ao decreto de inúmeros óbitos: do rádio com o advento da televisão, do cinema com o do vídeo cassete, do livro com o do computador, da televisão com os serviços de streaming...e por aí vai.
    
Na área da música não é diferente. Em meados da década de 90, a Melbay, importante casa de edição de partituras norte-americana, começou a editar as partituras do repertório de concerto para violão com a tablatura  correspondente abaixo de cada pentagrama. Foi anunciada a morte da partitura, professores do instrumento bradavam que esse panorama era irreversível: em um futuro, bastante próximo, todos os violonistas estariam tocando por tablatura*, e não pela partitura, algo em vias de extinção, jurássico, que ninguém teria tempo ou paciência para aprender frente à oferta das intuitivas tablaturas.

O fato é que a moda das edições do repertório tradicional do violão em tablatura não ‘pegou’. Ao contrário, os inúmeros projetos sociais e as igrejas neopentecostais que ensinam música espalhados pelo país ampliaram enormemente o público leitor de partituras, aumentando a demanda do setor. 

As Edições SESC têm lançado livros com partituras. Esta maneira incomum da edição tem sido uma das sensações entre o público do Centro de Pesquisa e Formação (CPF). Alunos e palestrantes esgotam frequentemente os exemplares da unidade de livros dos compositores Pixinguinha, Garoto e Américo Jacomino (Canhoto). Este último traz uma biografia do músico, mas o comentário geral é que o livro traz partituras do Canhoto ao final. São edições que certamente valem o investimento para professores, alunos, profissionais e amadores.

Por outro lado, há o fortalecimento das edições de partitura como uma maneira de alcançar a materialidade (talvez perdida com outra morte pressentida: a do CD), como espécie de forma de garantia da imortalidade da obra. Assim, músicos estão editando suas obras, de maneira independente, pois não existe um mercado organizado de edição de partituras no país. Entre os que estiveram no CPF lançando seus livros de partituras estão o Antônio Madureira, Toninho Horta, Francisco Araújo e Guinga, literalmente vendem como água, sendo que este último, apesar de ter lançado suas partituras na Alemanha, não encontrou quem quisesse ao menos distribuir os álbuns aqui no país. Ok, você pode estar pensando, mas este é um nicho bastante específico. Sim! É uma bolha, mas está longe de ser desprezível ou inexpressiva, mesmo em termos econômicos...

E as partituras não só não morreram, como andam ressuscitando sons! Elas literalmente abalaram o meio musical em 2017 com a notícia do lançamento do “Disco & Livro Adoniran em Partitura: 12 canções inéditas”**.

Estas músicas foram recuperadas através da descoberta de partituras do compositor paulista, fruto de um cuidadoso trabalho de pesquisa realizada pelos integrantes do Conjunto João Rubinato*** e que revelaram obras compostas entre 1935 e 1970 que não haviam sido gravadas até então.

Este lançamento inverte a lógica de trajetória da difusão das partituras que historicamente foram lançadas a partir de gravações de grande vendagem, o que gerava demanda (ou o interesse...) para a edição das partituras.
   
Outro anúncio de morte bastante comum é a dos gêneros musicais. A morte dela, a nossa mais genuína manifestação, a canção, foi decretada algumas vezes em palestras no CPF. Chamou-me atenção uma destas falas, quando o palestrante anunciou a morte da canção dizendo que desde a década de 1980 não se interessava em ouvir nada de novo. Surge a questão: estaria morta a canção ou o jornalista???
   
Dos suportes, então, teríamos que escrever um texto a parte...sucumbiram mesmo DATs, MDs; foram para a UTI as fitas cassetes; os LPs. Estes últimos voltaram à vida fetichizados pela nostalgia de gerações inteiras, adquirindo status e muitas vezes preço de objetos de arte.

O fato é que mesmo que os carros não possuam mais leitores de CD, que nossas músicas prediletas já estejam nas playlists em algum lugar da nuvem, a materialidade do suporte ainda não foi superada. Os CDs ainda são lançados, as rodas de escuta de LPs e 78 RPM são cada vez mais frequentes e grande parte da produção musical brasileira até pelo menos fins da década de 1980 encontra-se viva e salva em acervos pelo Brasil afora, a maioria de colecionadores particulares, se por acaso um dia todas as nuvens se dissiparem...
   
Entre todas essas mortes e perpetuidades duvidosas, no entanto, fica uma certeza: sejamos integrados ou apocalípticos, todos nós sabemos que entre mortos e feridos, se salva um: o SAMBA. Não o deixam morrer, alguém sempre o socorre, não viveremos para ver seu suspiro derradeiro. Portanto, se alguém vier com um papo furado para vocês, dizendo que o samba acabou, fiquem tranquilos!
Foi só o dia que clareou!!!

*Tablatura é uma forma de notação musical, que diz ao intérprete onde colocar os dedos em um determinado instrumento, ao invés de informar quais notas tocar.
** Lançamento realizado no CPF em 2018
***Fundado em 2009, o Conjunto João Rubinato tem como objetivo apresentar o lado menos conhecido da vida e da obra deste multiartista que foi Adoniran Barbosa – a começar pelo seu verdadeiro nome, João Rubinato.